José Marques

Não há nada que sacie a vontade que os ex-militares têm de contar o que se passou e o que passaram na guerra colonial. Mas depois de anos de um silêncio muitas vezes auto-imposto queixam-se que a sociedade continua sem querer saber.

O Mário Beja Santos da defesa dos consumidores volta a vestir o camuflado

Mário Beja Santos lê devagar. Pausadamente. Suspeita que se vai emocionar. “Ergui a tua cabeça e tu disseste-me baixinho: “Alferes, dá-me um tiro para acabar tudo”. Afastei-te a espingarda, o Jolá rasgou-te o dólman, tirou-te os restos das botas. Tu estavas muito mal, o braço esquerdo todo rasgado, buracos no peito, estilhaços nas pernas, pensei que tinhas perdido os dois olhos, tal o mar de sangue.”.

Silêncio total no pequeno auditório da biblioteca. O ex-oficial miliciano do exército português, mais conhecido como um dos primeiros portugueses na frente de luta em defesa dos consumidores do que como combatente na frente Leste da Guiné-Bissau entre 1968 e 1970, é traído pela emoção. Chora. Pede desculpa e retoma a leitura de um dos textos do seu livro “Diário da Guiné (1º volume) - Na terra dos Soncó ”. A voz sai marcada pela emoção. O episódio tem por título “O presépio de Chicri”. Tudo aconteceu há mais de 40 anos. Tudo acontece naquela tarde de sábado, 23 de Maio de 2009.

“Retirámos aos tombos, eu levava entre os dentes o teu braço esfacelado, e vamos percorrer os quilómetros mais dolorosos da minha vida até chegarmos ao anfiteatro de Chicri. Não sei quanto tempo durou esta viagem alucinante. Finalmente, depositei-te, cheio de ternura, no chão. O Teixeira tentou uma ligação, a ver se conseguia que um helicóptero te viesse buscar. Não se conseguiu a ligação. O Sol estava no zénite”. Perante o olhar tenso de antigos militares que passaram pelos vários teatros da Guerra Colonial em África, Beja Santos limpa as lágrimas com um lenço enquanto tenta recompor-se.

No início da conferência, em Alverca, numa sala onde não estava mais de uma dezena de pessoas, o ex-combatente conta como o pudor o impediu de falar da sua comissão na Guiné durante dezenas de anos. “Quando estava na guerra e apesar de não ser permitido eu contava o que acontecia. Aos meus pais, aos meus amigos. Mas não encontrava ressonância. Era como se não dissesse nada. Cá recebemos o teu aerograma eu ficava furioso”.

Não foi só Beja Santos que calou a Guerra dentro do peito. No início da conversa, integrada no ciclo “Guerra Colonial realidade ou ficção”, organizada pelo serviço de bibliotecas da Câmara de Vila Franca de Xira, o orador convidado lembrara que ainda hoje não há muitas obras de artistas plásticos sobre aquele período da guerra colonial, antes de dizer os primeiros versos do poema Nabuangongo, de Manuel Alegre. “Em Nambuangongo tu não viste nada/não viste nada nesse dia longo longo/a cabeça cortada/e a flor bombardeada/não tu não viste nada em Nambuangongo”.

“Quando regressei da Guiné suspendi as minhas recordações. Baixei os painéis. Queria acabar o meu curso. Iniciar a minha vida de casado. Criei uma carapaça para fugir à tormenta das minhas memórias dolorosas”. O ex-combatente sentiu que mesmo após o 25 de Abril ninguém queria tocar no assunto. “O que estava na agenda era a descolonização. As pessoas andam todas à procura da prosperidade. Nós fazíamos parte do passado. Do período colonial. Ninguém queria ouvir as nossas histórias e nós não sabíamos onde colocar aquilo em que tínhamos participado”.

Trinta anos depois Beja Santos juntou os mais de 500 aerogramas (cartas sem franquia para troca de correspondência entre militares e família) enviados à sua mulher, libertou-se do peso que o sufocava e começou a escrever sobre a sua comissão. “Era uma vez um menino alferes que chegou à Guiné e foi lançado no regulado do Cuor, no Leste, em 1968. A sua missão principal era proteger o rio Geba, garantindo a sua navegação, indispensável para a continuação da guerra. O alferes comandava dois aquartelamentos e alguns dos soldados mais valentes do mundo: caçadores nativos e milícias, gente que vivia no Cuor, em Missirá e em Finete”

Depois de “Na terra dos Soncó” em 2008, saiu já este ano “Tigre Vadio” o segundo volume do seu Diário da Guiné. “Agora falo do que se passou com grande naturalidade” diz a certa altura da sua exposição, algum tempo antes de se emocionar e deixar correr as lágrimas ao lembrar o episódio do soldado ferido.


Mas depois de anos de um silêncio muitas vezes auto-imposto queixam-se que a sociedade continua sem querer saber.

Nota de JM : Aconteceu-me o mesmo. Durante mais de 30 anos, nao queria sequer ouvir falar em tais cenas e agora, tenho necessidade de as contar, de as partilhar para que se faça história


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1 Response
  1. Anônimo Says:

    deixei andar de propósito.
    não comentei porque este assunto é ferida aberta mas hoje vou comentar.
    como é possível ordenar silencio a quem tanto sofreu e fez sofrer?
    como é possível calar a boca a quem quer aliviar um bocadinho o peso que tem lá dentro?
    porquê que os "outros", os que não passaram pelas situações, viram as costas ou simplesmente fecham os ouvidos, põem aquele olhar distante e cerram a boca para não ouvirem o desabafo de quem transporta uma carga tão pesada?
    estes Homens são seres que vivem descalços sobre brasas, ouvem barbaridades e parvoíces e calam a boca, calam porque sempre o fizeram e se sempre o fizeram foi porque foram obrigados a isso.
    vivem de olhos fendidos, brilhantes, analisando tudo ao seu redor, dormem de olhos abertos e ao mínimo toque que o corpo receba da parte de outra pessoa levantam-se de um salto, agarrando no que puderem pra bloquear o "ataque" que estão a ser alvo, pensam e calam, são amargos no seu intimo, esfarrapados, fartos, cansados...mas calam.
    quando finalmente um tem a coragem de contar o que fez e o que lhe foi feito...é catalogado de mentiroso, exagerado, gabarolas, porque "isso nunca aconteceu, é impossível, só pode ser mania deste que pensa que andou na guerra."
    e se ao contar, ao desabafar o faz emocionado, deixando finalmente sair aquela lágrima retida durante décadas..."maricas, tem a mania que foi à guerra e agora põe-se com estas mariquices...realmente estes gajos saem com cada uma!..."
    aqueles que viveram situações marcantes, aqueles que marcaram e foram marcados, deixem-se de silêncios, comecem a contar o que realmente se passou, aliviem esse peso enorme que transportam por coisa nenhuma, nenhuma imposição pode valer o sacrifício desse silencio doído e recalcado, essa perda de liberdade de consciência.
    por muitos anos pensei que os ex-combatentes "tinham a mania", juro que pensei, hoje envergonho-me de o ter feito mas fiz e assumo.
    um dia estava à procura da faca de mato do meu pai numa mala antiga que era usada pra guardar "coisas da tropa" e dei com um envelope.
    um envelope azul clarinho com uma faixa listada em volta, um envelope "de avião".
    olhei.
    "que se lixe, coisas dele.."
    voltei a olhar.
    tinha aparência de ter um conteúdo considerável.
    e de uma vez só peguei, abri, vi, choquei, adoeci, reconsiderei e morri.
    em segundos tudo o que me tinha sido ensinado a respeito dos ex-combatentes, tudo o que me foi transmitido por uma sociedade falsa, suja, hipócrita, mentirosa e enfadonha, tudo caiu.
    acabou.
    vi as fotos uma, outra e outra vez.
    arrumei-as exactamente como e onde estavam e fechei a mala.
    hoje gostava de saber onde param as fotos, mas ele já não me pode dizer e mesmo eu perguntando não obtenho resposta.
    por cada disparate que o meu pai fazia havia uma foto.
    passei a entender tudo o que ele pensava, como agia e principalmente porque o fazia.
    afinal o meu pai "não tinha a mania", tinha era trauma atrás de trauma e um enorme nó dentro daquele peito.
    partiu sem se ter desfeito dele.
    quando pouco antes de ter ido embora eu lhe perguntei se queria falar sobre isto ele respondeu "deixa lá...".
    que nenhum outro de vós "deixe lá", atirem cá pra fora tudo, agitem as águas e se provocarem um tsunami não se preocupem, quem não souber nadar que compre bóias.
    se puderem...fiquem bem.

    M.Sá


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